SBAT promoverá debate na Câmara Federal para enfrentar negligência histórica, informalidade e desafios contemporâneos na proteção dos direitos autorais no teatro brasileiro. A Audiência Pública acontecerá no dia 26 de agosto de 2025 em Brasília.
Em 1964, em texto publicado na edição n° 339 da histórica Revista de Teatro da SBAT, edição de maio-junho, Joracy Camargo, então presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, lançava um alerta contundente sobre os riscos que a revolução tecnológica representava para os direitos autorais. O artigo, intitulado “O Direito Autoral e a Revolução Tecnológica“, repercutia uma matéria publicada na revista INTERAUTEUR, da Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores, que por sua vez transcrevia reflexões do escritor alemão Helmut Dieter Hennings, do jornal Die Welt.
Camargo destacou o impacto iminente da chegada ao mercado dos aparelhos domésticos de gravação de vídeo, como o Heim-Ampex-Gerät, capazes de registrar emissões de televisão para uso privado, assim como já se fazia com fitas magnéticas no rádio. Ele observava que, mesmo com uso restrito ao âmbito doméstico, tais tecnologias permitiam a regravação e reprodução ilimitada de obras protegidas, como óperas transmitidas pela TV. Advertia que, diante da ausência de uma legislação preventiva, o cenário era de prejuízo certo para autores, compositores, músicos e intérpretes, enquanto as indústrias de rádio, TV, discos e aparelhos lucravam sem redistribuir qualquer compensação aos criadores.
Além da crítica à ausência de legislação preventiva, o texto de Joracy Camargo também antecipava os impasses jurídicos que dificultariam a defesa dos direitos autorais frente ao uso privado das tecnologias emergentes. Observava que “os autores estão correndo o risco de ser postos à margem pela revolução tecnológica” e advertia que, em breve, os lares brasileiros teriam, além de geladeira e rádio, um “Ampex” doméstico, o que acarretaria “consequências catastróficas para os autores, se os legisladores não cuidarem, desde já, de protegerem seus direitos”. Para ele, era urgente submeter ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei que regulasse a matéria no âmbito do uso privado, embora reconhecesse o obstáculo representado pelos que, “inexplicavelmente hostis ao direito de autor”, alegavam que as sociedades arrecadadoras não poderiam ter qualquer incidência sobre os domicílios particulares. Ao denunciar esse vácuo legal, Camargo revelava já naquele momento o descompasso entre a velocidade da inovação técnica e a lentidão das respostas institucionais – um descompasso que, hoje, se intensifica em escala global.

Na Alemanha, segundo o texto, o Bundestag chegou a discutir em 1963 a inclusão de uma taxa remuneratória para gravações privadas, mas a proposta foi rejeitada pelo governo federal. Em contraste, mais de 5 mil usuários alemães assinaram voluntariamente contratos com a GEMA, autorizando o pagamento de uma taxa por gravação de obras protegidas. Joracy Camargo viu nisso uma solução prática, defendendo que os autores brasileiros recebessem uma contribuição forfetária embutida na venda de aparelhos ou fitas, com o comércio encarregado da arrecadação. Para ele, ainda que considerada “lírica” no Brasil, tal proposta era perfeitamente aplicável com vontade política e educação do público: “tudo dependerá de uma campanha de esclarecimento no sentido de convencer os beneficiários das obras do espírito de que seus autores não devem ser lesados no mais legítimo de todos os direitos de propriedade”.
Décadas depois, permanece evidente que os desafios relacionados ao direito autoral no Brasil pouco evoluíram ou solucionaram os problemas discutidos por Camargo. As propostas e conquistas de outras sociedades no exterior ainda são ignoradas em nosso país, resultando em prejuízos irreparáveis aos autores. A falta de preservação dos direitos não se limita aos teatros, estendendo-se também às plataformas digitais, aprofundando a crise enfrentada pelos criadores e mantendo-os vulneráveis diante de uma realidade tecnológica que avança muito mais rapidamente do que as respostas legislativas e institucionais brasileiras.
Em 2025, mais de seis décadas depois, a SBAT continua enfrentando desafios semelhantes e até mais complexos, agravados pelas novas tecnologias digitais. Por iniciativa da entidade, está agendada para o dia 26 de agosto deste ano uma Audiência Pública na Câmara Federal, destinada a debater o estado atual dos direitos autorais no teatro brasileiro. A SBAT, fundada há 107 anos e possuidora de um acervo histórico valioso com mais de 10 mil sócios cadastrados, denuncia um cenário preocupante de negligência, informalidade e fragilidade institucional.
Segundo Gillray Coutinho, um dos atuais Coordenadores Provisórios da SBAT, “As associações de direitos são ignoradas, não se sustentam e não têm como proteger a aplicação da legislação. O que vemos é um processo adiantado de descaracterização das normas legais que regulamentam os negócios, onde reinam a informalidade e a desinformação. Enquanto tentamos ganhar espaço no ambiente audiovisual e na internet, estamos nos afastando da lei autoral no teatro”.
Este ambiente de informalidade e desinformação, somado ao avanço de novas tecnologias como a Inteligência Artificial e à influência crescente das plataformas digitais, coloca em risco os direitos autorais dos criadores, dificultando ainda mais a fiscalização e a remuneração justa pelo uso de suas obras. A capacidade desses meios de reproduzir e distribuir obras de forma acelerada e muitas vezes não autorizada amplia os desafios legais e éticos.
A Audiência Pública provocada pela SBAT representa uma convocação à responsabilidade institucional diante da crescente precarização dos direitos autorais no teatro brasileiro. Além de demonstrar as falhas normativas, a iniciativa denuncia a urgência de restaurar a legitimidade da legislação autoral e o papel das associações representativas num cenário marcado por transformações tecnológicas aceleradas e crescentes assimetrias comerciais.
Esse gesto inscreve-se na mesma linha de advertência traçada por Joracy Camargo em 1964, quando apontava os perigos da inércia legislativa diante das transformações tecnológicas. Se naquele tempo o risco era representado pela gravação doméstica de conteúdos televisivos, hoje ele se manifesta de forma ainda mais difusa e insidiosa: no desrespeito sistemático aos direitos autorais nas plataformas digitais, no uso não autorizado de obras por corporações tecnológicas, na apropriação massiva de conteúdos por sistemas de inteligência artificial, no enfraquecimento deliberado das entidades de gestão coletiva e na normalização do uso desregulado das criações intelectuais.
O que antes era uma ameaça emergente transformou-se em um sistema institucionalizado de despossessão e invisibilidade. Ao convocar o parlamento e a sociedade civil para esta Audiência Pública, a SBAT não reivindica apenas a proteção patrimonial dos autores, mas defende a cultura como campo de memória, justiça e dignidade, e os criadores como sujeitos de direito, e não como matéria-prima descartável da economia e dos interesses do mercado.
As sociedades de autores e as entidades sindicais não foram marginalizadas por acaso: foram estrategicamente enfraquecidas por representarem direitos, vozes organizadas e contrapoder. Em um modelo de Estado que favorece os detentores do capital financeiro e midiático, são justamente aqueles que produzem, escrevem e sustentam a indústria cultural com seu trabalho que seguem sistematicamente silenciados. Reverter essa lógica é tarefa urgente, não apenas em nome dos autores, mas em defesa do próprio princípio democrático da cultura.
Sessenta anos após o alerta de Joracy Camargo, a SBAT retorna ao centro do debate público com esta audiência, renovando o gesto de 1964: exigir de todos, Estado, mercado, sociedade e também do próprio artista, o compromisso com a proteção de quem cria em ato de resistência aos interesses de quem explora a criação.
A consolidação de um sistema autoral justo requer, além de urgentes revisões normativas, de uma mudança estrutural na forma como se reconhece, regula e remunera a criação intelectual. Sem isso, a cultura, e nesse contexto em especial o teatro, permanece vulnerável à lógica da expropriação e ao esvaziamento da autoria como instância de pensamento, expressão identitária e mediação simbólica na construção do sentido social.
Fábio Rocha Pina
Niterói, 26 de junho de 2025