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Há algo de podre no Reino da Dinamarca, artigo de Wilson Coelho

Entre os dias 12 e 22 de janeiro do ano em curso, aconteceu o X ENFETELA – Encontro Festival Teatro Latinoamericano, na comuna de La Granja, região metropolitana de Santiago de Chile. Durante esses dias, participaram do festival diversos artistas como músicos, movimentos populares e grupos de teatro de diversos países como Chile, Equador, Argentina, Brasil, Peru, Uruguai e Espanha. No primeiro dia (12), como uma espécie de “ensaio” e integração dos grupos com a comunidade local, houve a apresentação do músico chileno Pulga Rodríguez, além do movimento Danzas Tribales, ambos do país anfitrião. No segundo dia (13), considerado a abertura oficial, numa pareceria entre Espanha e Chile, o “Espectaculo Circo”; depois, o grupo chileno Pascany, com “Dinosaurios” e o peruano “Cesar Vallejo, com “La Carta”, encerrando com um ato protocolar de intercâmbio entre palco e plateia. No terceiro dia (14), todos do Chile, se apresentaram os grupos Sol y Luna e Pascany, respectivamente, com as obras “Títeres de la Plaza Verde” e “Viernes a las 7”, além de Agrupación Ventolera, com “Hijas del Pueblo”. No quarto dia (15), entra em cena o Grupo El Contrabajo, da Colômbia, com a obra “Ozo-No”, o Taller Paysandu, do Uruguai, com “G. D. – la Mujer del Escritor” e o Grupo Tarahumaras, do Brasil, com “Violeta de los Andes”. No quinto dia (16), tivemos os grupos Bola Oito, da Argentina, com “Gabotino 2 – el dia que escondieron las estrelas” e o Decarton Teatro, com “Las Manos de Policarpo”. No dia sexto dia (17), apresentaram a Compañia Solitaria, do Equador, com a obra “Titeres – la bruja desfachatada” e o Grupo Tarahumaras, do Brasil, com “Os últimos dias de paupéria”. No sétimo dia (18), ENFETELA não descansou, e apresentaram o Títeres Muchik, do Peru, com “Histórias de Pirin Pin Pin” e o Grupo Coiracho, da Espanha, com “Almar”. No oitavo dia (19), numa parceria entre Chile e Colômbia e pelo Grupo Dó-Ré-Mimo, foram apresentadas as obras “Cuenta Cuentos” e “Tabu”, além do Grupo Bola Oito, com “Hola! Hay alguién?”. No nono dia (20), o Funca Teatro, do Chile, apresentou a obra “Neruda” e, o Grupo Nada ha cambiado, da Argentina, a “Obra! Palabras Andantes!”

Para além das obras apresentadas no palco central (Casa Teatro 15 Poniente 8441), aconteceram oficinas, debates e apresentações itinerantes em escolas e outros espaços. Não poderíamos esquecer da participação especial do ator, diretor e teatrólogo uruguaio Raúl Rodríguez da Silva, diretor da Mostra Internacional de Teatro do Mercosul “Atahualpa Del Cioppo”, membro do Grêmio de Escritores e Diretores da Rússia e ex-preso político no Chile e no Uruguai, inclusive, com José Mojica, além de José Luis Olivari, ator, diretor e professor de teatro na Pontifícia Universidade Católica de Chile. Também não poderia deixar de registrar a presença de Fabiola Campillai, chilena, senadora, ativista e defensora de direitos humanos, que perdeu a visão, olfato e paladar, além de ficar com fraturas no rosto e no crânio, quando atingida por uma bomba de gás lacrimogêneo por um carabineiro, durante as manifestações de 2019, em Santiago de Chile. Ainda pudemos usufruir da integração de alguns atores e atrizes dos grupos participantes do festival que, a partir do poema “Nós fazemos teatro”, que traduzi de Fernando Bonassi, realizaram uma belíssima performance. Ademais, no encerramento do festival, depois das apresentações, contamos com uma homenagem a Piedad Córdoba, a combativa senadora colombiana conhecida por seu papel na libertação de sequestrados das FARC e falecida neste dia 20. Também, por Natália Omena, atriz do Tarahumaras, uma homenagem à atriz e palhaça venezuelana Julieta Hernández, morta no Amazonas, enquanto viajava de bicicleta pelo Brasil. Por fim, com o músico Fraga Ferri, também do Tarahumaras, deu-se o momento em que atores, atrizes e o todo o público da comunidade finalizando esta festa com um grande baile.

Aqui, somente informo sobre o nome das obras e seus grupos porque o espaço é curto para dizer da trajetórias de todos os dramaturgos, diretores e atores comprometidos com o teatro político e a serviço do povo, sem mencionar o conteúdo de cada uma dessas obras e o quanto têm para contribuir com a luta de classes num processo de conscientização e propostas de mudar o mundo em defesa da vida contra a “democracia” burguesa. Para início de conversa, o X ENFETELA, para além de ser uma décima edição de um projeto, é fruto de uma árvore que brota da semente que foi plantada desde a ditadura chilena.

Afinal, o que é o ENFETELA – Encontro Festival Teatro Latinoamericano? Trata-se de um espaço popular para o intercâmbio das culturas latino-americanas e do mundo através do teatro. Mas é muito mais que um evento, considerando que se realiza como uma celebração, que já dura uma década, promovendo a atividade teatral em comunidades carentes, num intercâmbio teórico-prático e experimental entre grupos participantes tanto locais como de nosso continente. O ENFETELA e a Fundação Calibrarte são movimentos independentes e autônomos em seu funcionamento, não têm fins lucrativos nem comerciais, sendo seu labor através de processos de produção como autogestão, tanto pela sua proposta política quanto pela inoperância e desinteresse tanto do Estado quanto do mercado de apoiá-los, razão pela qual não podem comprometer recursos econômicos para traslados entre países, nem a pagar cachês por atividades. O que não gera aos participantes outras expectativas, senão o encontro de grupos, artistas e público para realizar um encontro e intercâmbio estéticos e propostas políticas em prol do acesso ao povo às artes cênicas. Ainda assim, se responsabilizam pela manutenção dos convidados como a hospedagem e a alimentação, além do transporte interno e o apoio técnico. Tanto as apresentações quanto as atividades complementes como oficinas, debates e outros, sempre se realizam e espaços não convencionais e com entrada franca para os habitantes das comunidades. Tudo isso obedecendo aos princípios deste processo de intercâmbio e aproximação entre nossos povos através do Teatro, promovendo um estímulo nos propósitos de descentralizar e democratizar a atividade teatral em nossa sociedade.

Na verdade, apesar de, neste ano de 2024, ter sido a realização do X ENFETELA, todo esse movimento teve origem em 1987, ainda na ditadura, com o nome de “Encuentro de Teatro Poblacional” (Encontro de Teatro Populacional) como uma forma de organizar os grupos de teatro, não apenas para a sua sobrevivência enquanto trabalhadores da arte, mas também como uma possibilidade de criar um espaço junto ao povo chileno para uma reflexão e resistência à política vigente, num momento em que a liberdade de expressão era limitada e oprimida. Sua missão era manter o movimento artístico comunitário, utilizando o teatro como uma ferramenta de formação e transformação social, educacional e cultural. Essa iniciativa foi da Cia La Carreta de Teatro, protagonizada por Victor Soto Rojas. Depois, com a chegada de grupos de outros países interessados em participar deste festival, ele passa a se chamar ENTEPOLA (Encontro de Teatro Popular Latino-Americano), com a proposta de encenar trabalhos de teatro comunitário, teatro de rua e teatro popular, inspirado em Augusto Boal e Paulo Freire, desde um enfoque latino-americano. Aproximando-se de três décadas de realização do ENTEPOLA, devido ao tamanho do evento e, de certa forma, por ter se afastado dos princípios que lhe deram origem, Victor Soto Rojas se afasta e pouco tempo depois, deixa de existir. Assim, surge o ENFETELA, capitaneado por Victor Soto e a Fundação Calibrarte, resgatando as propostas comunitárias e de integração latino-americana, bem como o processo de formação e transformação social, educacional e cultural.

A participação do Grupo Tarahumaras no X ENFETELA nos encheu de orgulho por muitos motivos. Nem tanto pela acolhida, porque todos os grupos de todos os países foram igual e carinhosamente tratados durante todo o festival. De certa forma, além de estarmos representando o país presidido pelo PT – Partido dos Trabalhadores e a admiração que todos têm por Lula, fomos considerados e elogiados pelos dois espetáculos com os quais participamos, a saber, “Os últimos dias de paupéria” e “Violeta de los Andes” e, e também por fazermos parte desse movimento de teatro latino-americano participando de festivais em alguns países como Chile, Cuba e Argentina há mais de 30 anos e que, inclusive, produzimos cinco ENTEPOLAS no Brasil (em especial, no Espirito Santo), um em Nova Venécia, 3 em Colatina e um em Vila Velha. Mas, no dia 21, no pós-festival, quando alguns grupos já se despediam, parafraseando Pablo Neruda, “Confesso que vivi”, uma espécie de decepção praticamente irreparável por parte de todos os grupos. Tudo isso a partir de uma notícia de jornal informando que a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), entidade vinculada ao Ministério da Cultura do Brasil (MinC), durante a realização desse festival de teatro popular, estava participando de outro, o “Santiago a Mil”, da Fundação Teatro a Mil, ou seja, uma fundação privada que a todo ano recebe apoio financeiro de muitos milhões, tanto do governo chileno quanto de grandes empresas.

Cabe aqui uma ligeira reflexão: por que o governo brasileiro opta por financiar o “Santiago a Mil” que é realizado por um grupo de produtores sem compromisso com os movimentos populares do Chile? Ademais, por que o governo brasileiro preferiu um acordo com uma fundação privada ao invés de estabelecer uma parceria com o estado chileno que poderia favorecer outros movimentos culturais e artísticos? Qual é a contrapartida que a Fundação Teatro a Mil tem a oferecer para o movimento teatral no Brasil? A participação de agentes artísticos brasileiros em rodadas de negociação de uma obra como uma mercadoria? Quais os critérios para essas participações? Como dizia Marx, o regime capitalista não é propício à arte, exceto quando um discurso de embelezamento do sistema ou um bom investimento econômico.

No discurso de Lula, em um recente evento do PT, inclusive, noticiado pela mídia burguesa, ele disse que “Nós temos que nos perguntar porque um partido que muitas vezes nos discursos pensa que tem toda a verdade do planeta só conseguiu eleger setenta deputados. Por que tão pouco se a gente é tão bom? Por que tão pouco se a gente acha que poderia ter muito mais? É preciso que a gente tente encontrar as respostas dentro de nós. Será que estamos falando aquilo que o povo quer ouvir de nós? Será que nós estamos tendo competência para convencer o povo das nossas verdades ou será que nós temos que aprender com o povo como é que a gente fala com ele?”

Não sabemos se Lula fez esse discurso apenas para a militância, essa que arregaça as mangas e faz uma campanha permanente, lutando dia-a-dia no seu trabalho, no seu bairro, entre amigos e familiares, mas acredito que a questão deveria ser estendida para os que têm mandato, os funcionários, os cargos comissionados rateados entre as tendências, os chamados de confiança (como se nós da base não fôssemos). Parafraseando Lula, poderíamos perguntar aos integrantes do Minc: por que os gestores dos Órgãos de cultura (que quase sempre confundem cultura com arte) pensam que têm toda a verdade do planeta e só conseguem contemplar o discurso da arte burguesa? Por que tão poucos grupos são contemplados? Por que tão pouco se os movimentos culturais poderiam ter muito mais? É preciso que os funcionários dos órgãos de cultura deixem de encontrar as respostas dentro de si mesmos. Será que estão falando aquilo que os artistas do povo querem ouvir? Será que estão tendo competência para convencer aos artistas das suas verdades ou será que têm que aprender com os artistas como é que se fala com eles?

Enfim, essa forma de governo em pouco se difere de outros que tanto combatemos, tendo em vista que reproduz o modelo socialdemocrata que escamoteia a justiça e estratifica, no mundo das artes, a hierarquia de uma sociedade que, além de colonizada, discrimina os movimentos culturais que, na maioria das vezes, são reféns das regras de gestores e produtores. E não é por acaso que no Estado do Espírito Santo, onde vive o Tarahumaras e mais de uma centena de grupos, temos uma secretaria de cultura (apesar de ser de outro partido) é apoiada pelo PT, mesmo sendo centralizadora, autoritária e inoperante que não atende nem 10% a demanda dos trabalhos produzidos. Ao contrário, vivemos um momento em que a arte popular revolucionária e transformadora, necessita ser priorizada nas implementação de políticas públicas de estado dos governos ditos democráticos e socialistas, tanto por seu papel intrínseco de afirmação de valores humanistas e mobilizadores de sentimento de solidariedade e ações libertadoras e transformadoras quanto pela urgência no enfrentamento do avanço político nefasto da ultra direita no Brasil e no mundo.

* Wilson Coêlho é poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo, escritor com 27 livros publicados, assina a direção de 28 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e “Auditor Real” do Collège de Pataphysique de Paris, além de filiado e fundador do PT – Partido dos Trabalhadores.

(Crédito da foto: Nico Soto)

(Este artigo reflete a opinião do autor, não expressa a opinião da SBAT)

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