Em Marselha, 4 de setembro de 1896, 8 horas da manhã, Rua Jardin des Plantes, 4, nasce Antonin Marie Joseph Artaud, filho de Antoine Roi Artaud e Euphrasie Artaud. Quem foi Artaud? Revolucionário ou alienado? Louco ou lúcido?
Na França dos anos 20 aos 40 do século passado, o poeta, escritor, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, pintor e ator de cinema e teatro, Antonin Artaud, além de uma vasta obra literária e de teoria da arte, em especial a teatral, produziu uma série de cartas como a Carta aos Diretores de Asilos de Loucos, escrita em sua estadia no manicômio de Rodez, que inspirou a luta antimanicomial, onde afirma que “a credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais” e que “os hospícios, longe de ser ‘asilos’, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra.” Na Carta aos Reitores das Universidades Europeias, também em Rodez, inicia dizendo que “na estreita cisterna que os Senhores chamam de ‘Pensamento’, os raios espirituais apodrecem como a palha.” Indaga aos reitores sobre suas pretensões de canalizar a inteligência e diplomar o espírito. Num certo sentido, pelo teor de suas cartas, Artaud eleva a carta ao status de literatura.
Participou do movimento surrealista com Breton, Dali, Magritte, Buñuel e tantos outros. Nesta época, teve uma grande atuação no teatro e, com Roger Vitrac e Robert Aron, criou o Teatro Alfred Jarry. Por sua violência iconoclasta, Artaud foi expulso do grupo, tendo em vista não aceitar o movimento surrealista refém do Partido Comunista Francês.
De várias participações no cinema, destaca-se o fato de ter sido convidado por Abel Gance para interpretar o herói da Revolução Francesa, Jean-Paul Marat, no épico Napoléon. Também foi convidado por outro dos maiores diretores da história do cinema, o dinamarquês Carl Théodore Dreyer, para o papel de um monge louco apaixonado por Joana D’Arc, no filme La passion de Jeanne D’Arc (O Martírio de Joana D’Arc). Mesmo sendo autor de vários roteiros de cinema, a única obra levada às telas foi La Coquille et le clergyman (O caramujo e o clérigo), em 1928, com direção de Germaine Dulac. Segundo Georges Sadoul, considerado um dos maiores críticos de cinema de então, La Coquille et le clergyman, é um filme “honesto e honorável” e, ademais, “revolucionário e de vanguarda”.
A importância de Artaud não está simplesmente em ter criado o “teatro da crueldade” ou por ser o autor de O teatro e seu duplo. Antonin Artaud é a imagem crua de um homem que encarnou o sonho e a arte em sua própria vida, ousando enfrentar as contradições de sua época.
Na França dos anos trinta e quarenta do século XX, a recompensa que Artaud teve pelo seu desinibido modo de viver e pela rejeição dos valores convencionais, conforme mencionei anteriormente, fora o internamento em hospitais para doentes mentais durante nove solitários anos. A importância de Artaud não está simplesmente em ele ter sido um inspirador do teatro ou um pesquisador de estilos alternativos de vida. Artaud foi sobretudo o criador de uma imagem viva, um homem que fez da própria carne a lenha de seu verbo, experimentou as contradições e discórdias entre muitas manifestações e movimentos que contribuíram para mudar o mundo, tanto no espaço da estética e da política quanto na possibilidade de colocar a razão na berlinda. Em virtude de seu declarado amor ao teatro, reivindicava a sua destruição. Mas destruir o quê? Para destruir este teatro refém do modelo civilizatório cuja sistematização se dá a partir de Artistóteles em sua Poética, Artaud se utiliza dela numa espécie de contramão, tendo em vista que o mesmo é um dos maiores referenciais no que tange a existencia de um teatro não-aristotélico, ou seja, toda a sua obra caminha na direção da ruptura com os cânones das unidades de ação, tempo e espaço.
Artaud também problematiza o lugar e a função do texto na realização cênica. Para ele, o textocentrismo ou a articulação de um espetáculo a partir e em torno de um texto, acabava por determinar uma espécie de ditadura da palavra. Tanto por defender outras formas de usar a palavra, bem como a ideia de que fora da França havia um movimento de renovação do teatro, com tendência a restituir a arte da encenação e do espetáculo, Artaud faz elogios aos balés russos que acreditava “terem devolvido à cena o sentido de cor”. Quanto aos teatros russo e alemão, enfatiza a substituição de um teatro psicológico por um teatro de ação e de massas e revela seu desejo de dispensar atores profissionais.
Provavelmente, há muitos outros autores e teóricos contemporâneos de Artaud dos quais não se sabe se ele os tenha conhecido, que muito contribuiram em sua trajetória, a partir de um projeto de novos valores para utilização do texto, a ocupação de espaços, etc. Podemos citar Bertolt Brecht (1898-1956). Há os que o colocam em confronto com Artaud, entendendo que este buscava simplesmente um teatro de participação, frenesi e irrealismo, enquanto Brecht seria resumido a um teatro do “distanciamento”, didático e ligado à história. Equivocado colocá-los em universos irreconciliáveis, principalmente, se levarmos em conta o roteiro de A Conquista do México, onde Artaud persiste na concepção de um teatro que, apesar de um enfoque “mágico”, também se insere no teatro político denunciando “a questão terrivelmente atual da colonização”.
Nessa suposta “elaboração de um teatro materialista”, Artaud se difere de Brecht e de tantos outros, considerando que, mesmo se afastando da catarse aristotélica, seu “materialismo” não tem compromisso com o distanciamento ou estranhamento didático brechtiano. O materialismo de Artaud não é um discurso sobre a matéria, mas é a matéria/corpo se manifestando como linguagem, onde se existe uma espécie de logicidade na mesma, não é algo anterior à experiência, ou seja, a lógica não passa de uma leitura do fenômeno, ou seja, o acontecimento teatral.
A contribuição de Antonin Artaud não se dá pela mera sistematização de um novo teatro pronto e acabado para responder às inquietudes daqueles que não mais se contentam com o caduco teatro tradicional, mas pela provocação aos que necessitam assumir a si mesmos como um instrumento de ação sobre o mundo para mudá-lo, recriando o homem e curando-o, sim, pela destruição.
Em 4 de março de 1948, em Paris, Artaud é encontrado morto no pavilhão dos cancerosos do manicômio de Ivry-sur-Seine e foi sepultado sem ritos religiosos no cemitério desse mesmo hospital.