Baseada na Insurreição do Queimado – Episódio da História da Província do Espírito Santo, de Afonso Cláudio, a peça teatral Queimados: documento cênico, de Luiz Guilherme Santos Neves (foto em destaque, acima), publicada em 1977, é, para além de um “documento cênico”, como propõe o autor, um resgate da memória de nosso estado, tanto no que diz respeito ao processo genocida e autoritário de nossa formação quanto no papel do negro na resistência. E a importância dessa obra também se dá por retirar a invisibilidade da história do Espírito Santo no cenário nacional.
Nessa obra, Luiz Guilherme Santos Neves aborda um dos mais significantes eventos da história capixaba, quando, em 1849, no município da Serra, os negros escravizados, que ajudaram a construir a igreja de São José do Queimado em troca da alforria supostamente oferecida pelo frei Gregório José Maria de Bene, se rebelaram quando entenderam que foram traídos.
A história dos negros na Freguesia de Queimado, assim como no Espírito Santo e no Brasil, trata-se de um recorte histórico, pois faz parte de um processo de colonização implantado no país e na América Latina, a partir da violência e da negação da alteridade, do outro.
Elysiário, Chico Prego, João Pequeno, João da Viúva e Josino, entre tantos outros, tiveram um destino cruel, pelo simples fato de reclamarem pelo não cumprimento daquilo que havia sido interpretado por eles como uma promessa de alforria em troca da construção da igreja. Muitos deles foram mortos, enforcados, e outros, conforme o grau de envolvimento, açoitados por terem se “rebelado”, pela razão de lutarem para ser livres, o maior e mais sagrado bem da humanidade.
A peça de Santos Neves é construída em dois atos, sendo o primeiro composto de seis cenas e o segundo, por cinco. Embora não seja de nosso interesse esquadrinhar o gênero em que se estrutura Queimados, despertou-nos a atenção a presença do coro nesse texto dramático. Tal percepção nos levou à clássica descrição de Aristóteles da tragédia, gênero famoso por colocar em cena altos homens melhores do que somos.
Enraizada numa moral ocidental sabidamente elitista e excludente, a tragédia perdeu relativamente seu lugar, quando o drama passou a admitir no gênero dramático, no século XIX, heróis burgueses, de todo modo ainda ligados à elite econômica e/ou intelectual. Como adiantamos, esquadrinhar a peça de Luiz Guilherme Santos Neves não é nosso objetivo, mas pensamos que seria producente ler Queimados como uma “tragédia” de heróis negros, porque conscientes da necessidade inegociável de liberdade e dignidade, o que os torna homens melhores do que somos em seu sentido mais importante, o do humanismo fundamental.
Neste ensaio pouco convencional pretendemos, a partir de nossa leitura, reflexão e prática dramatúrgica, comentar Queimados e seus aspectos trágicos, mas atualizando, talvez, arriscadamente, os preceitos aristotélicos. Com esse objetivo, passaremos pelos atos e cenas do documento cênico, ponderando sobre a composição dos personagens históricos ficcionalizados por Santos Neves e sua ação de homens melhores.
Como recurso para contextualizar no tempo e no espaço o universo da trama, no primeiro ato, em sua primeira cena, intitulada “A noite da véspera”, com as cortinas ainda fechadas, um anunciante lê: FREGUESIA DE SÃO JOSÉ DO QUEIMADO.
A partir desse momento se desenrola a trama, quando os negros, no meio da mata e num clima de conspiração, começam a organizar estratégias para a inauguração, no dia seguinte, 19 de março de 1849, da igreja católica São José, em homenagem ao José, pai de Jesus Cristo, conforme a mitologia cristã, e, ironicamente, considerado o santo padroeiro dos trabalhadores. Os negros, escravizados, estavam apreensivos e, obviamente, acostumados com os desmandos de seus senhores, desde os fazendeiros, os grandes proprietários de terras, o governo e a Igreja organizavam-se para a inauguração da referida igreja caso não fosse cumprida a promessa de liberdade que, conforme entenderam, foi um compromisso firmado com o frade italiano Gregório José Maria de Bene, que fazia parte de um grupo de franciscanos missionários que vieram ao Espírito Santo para propagar, leia-se catequizar, a religião católica.
Na segunda cena do primeiro ato, entendida como “Cena após a noite da véspera”, que é o dia da inauguração da Igreja São José de Queimado, tudo se resume numa grande festa com muita gente, quando os protagonistas são os fazendeiros com suas mulheres e seus filhos. Nesse momento é que afloram as expectativas de que o frade italiano vai anunciar a alforria dos escravizados que construíram a igreja.
Mas referendando a crônica da traição anunciada, o frade, em nenhum momento da missa, faz referência à alforria, sequer aos negros que construíram a igreja. Há um alvoroço entre os cativos que decidem pela resistência e enfrentamento. Entre a amotinação e os gritos de “Abre! Abre! Queremos a liberdade. Alforria, alforria! Liberdade!”
Nesse lugar, onde o enfrentamento e a revolta são latentes, Elysiário se compromete a entrar na igreja e tentar resolver o empasse a partir do diálogo, mesmo que a impossibilidade se impusesse como o limite do possível diante do que estava determinado pela lei das circunstâncias. Assim, na “Cena entre Elysiário e frei Fregório”, terminam por ficar explícitos os anseios e entendimentos de ambas as partes.
Depois da conversa, na “Cena após o encontro com o padre Gregório”, Elysiário, saindo da igreja, convoca os companheiros para fazer o relato. Apesar do lado negativo do encontro que, conforme a confissão do padre de que havia falhado em todas as tentativas de convencer aos donos dos escravizados pela alforria, também trouxe um novo plano, aconselhado por Gregório, que era o de voltar às fazendas e angariar junto aos fazendeiros assinatura de libertação.
Obviamente, nessa discussão, muitos negros não acreditaram na proposta do padre que, de certa forma, estava apenas tentando evitar um confronto entre as partes. Mas apesar da postura de Chico Prego e de alguns de seus companheiros, diante dos argumentos de Elysiário de que o padre tinha influência com a
rainha-imperatriz, Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, para dar andamento no projeto de alforria após as assinaturas, ficou acordado que os escravizados fariam essa tentativa, embora sem perderem a desconfiança. Dividiram-se em equipes e saíram em campo para a coleta de assinaturas. Como alguns haviam previsto, a proposta não seria aceita pelos fazendeiros. Conforme o praticamente antevisto, na investida de Chico Prego numa das fazendas é recebido pelo Coronel que o esperava armado e foi bastante incisivo sobre sua recusa em assinar o documento. Depois dessa argumentação de Chico Preto, o Coronel, de certa forma, parecendo sentir-se acuado, se rendeu, embora continuasse mantendo sua posição, talvez por não acreditar que os negros teriam algum êxito.
Independente desse discurso nervoso e agourento do Coronel, Chico Prego consegue a assinatura do documento e vai até o seu grupo, mas – logo em seguida – um companheiro chega, avisando que as tropas de Vitória estavam a caminho e que a peleja seria inevitável. Assim, se dividem em novos grupos e definem algumas tarefas na expectativa do próximo dia.
No dia seguinte, na “Cena antes do confronto no desfiladeiro”, as lideranças se reúnem na região vizinha de Pendanga e, decepcionados, constatam que foram muito poucos os negros cativos que aderiram e que a debandada foi grande. Discutiram a situação e alguns chegaram à conclusão de que os cativos “afrouxaram a valentia”, enquanto outros acreditaram que tudo isso se devia à troca de plano que fez os escravizados perderem a confiança na empreitada.
Apesar do desalento de alguns, muitos ainda tinham a esperança de que o padre Gregório até então poderia intervir em suas defesas e que seguiriam colhendo assinaturas dos fazendeiros em prol da alforria. Assim, por um lado, contavam com o padre que, de certa forma, também poderia ser preso e necessitava ser protegido das milícias; por outro, pelo arriscado desse enfrentamento, temiam medir forças com as tropas.
Mesmo conscientes do número reduzido de rebeldes, reconheceram que não haveriam de temer nenhum risco além do que já estava colocado para eles. Era um caminho sem volta e somente lhes sobravam duas alternativas, lutar ou lutar, e assim se prepararam para o enfrentamento, indo em direção a Queimado.
No último quadro do primeiro ato ou a “Cena após o confronto com as forças de Varela”, encontram-se João da Viúva, ferido na perna, e Chico Prego. Fazem uma avaliação do confronto, comentam e enumeram os mortos dos dois lados, assim como reconhecem a falta de organização do movimento e demonstram a decepção com os omissos que, independente de seus motivos, são considerados “traidores”. Entendendo a situação, deduzem que não caberia nenhuma outra possibilidade de sobrevivência senão a fuga, e consideram que era chegado o momento da perseguição e da vingança dos fazendeiros com todo o aparato do governo.
No segundo ato, na primeira cena, intitulada “Julgamento de Frei Gregório”, que, conforme o dramaturgo, “mais que um julgamento, é um interrogatório”, referendado, inclusive, pelo Meirinho, oficial de justiça que anuncia o ato para referendar o juramento que o padre fez ao alferes Varela para responsabilizar Elysiário pelo motim de Queimado.
Assim, inicia-se o interrogatório, tendo como ponto de partida o juramento do padre para averiguar os fatos e estabelecer-se o que convinha como verdade. Depois vêm suas justificativas do projeto de construção do templo de Queimado, dedicado, no seu entender, ao grande e poderoso patriarca São José, pai adotivo de Nosso Senhor Jesus Cristo, quase como uma dádiva para o povo que, de acordo com o pensamento dominante da Igreja e dos senhores de escravizados, precisava se deslocar de lugares longínquos e difíceis para ter acesso à Santa Missa num lugar propício e aconchegante. No entendimento desses, os cativos não eram considerados mais que idiotas, tendo em vista que o conhecimento admitido como verdadeiro deveria ser o dos colonizadores, referendando a máxima de Marx de que “numa sociedade dividida em classes o pensamento que predomina é o pensamento da classe que domina”.
Mas a grande polêmica e interesse do juiz não era saber dos propósitos da fundação da igreja, mas – sim – entender até que ponto ao padre poderia ser imputada a responsabilidade na rebelião. Da parte de Gregório, tudo não passava de um mal-entendido em que Elysiário, que lhe era próximo e em quem confiava, num determinado momento, inspirado pelo “Inimigo do Gênero Humano”, acreditava que a contribuição dos escravizados na construção da igreja lhes garantiria a alforria.
Dentre as diversas pessoas citadas no depoimento do padre Gregório, o juiz solicitou o sacristão José Pinto Lima, o juiz de paz João da Vitória Lima e o professor Manoel Pinto de Alvarenga Rosa para deporem como testemunhas. Todos os três acabaram por referendar as palavras do padre. Não se dando por satisfeito, em seguida, o juiz convocou o capitão Rodrigues Velho para depor, embora este não tenha estado presente na missa, pois – conforme ele mesmo – “não sou chegado a rezas”. Rodrigues Velho havia escrito um relato sobre o ocorrido a pedido das autoridades e baseado no que havia ouvido da gente que habita na região. Diferentemente dos depoimentos das outras três testemunhas, o capitão Rodrigues Velho, num dos trechos de sua carta-relato, apesar de depreciar os negros e suas intenções de liberdade, imputa ao padre a rebeldia dos negros.
O juiz dá mais uma oportunidade ao padre para se manifestar. Gregório se defende, alegando o levante dos negros como uma ação a serviço do “Inimigo do Gênero Humano e de Deus”, e jura continuar lutando pela sua inocência in saecula saeculorum. O juiz determina encerrada a sessão.
Na cena dois, intitulada “Monólogo do capitão Antonio Pinto”, Luiz Guilherme Santos Neves, sintetiza o papel do branco colonizador em terras capixabas, embora seu perfil coincida com todo o processo de escravidão nos mais distintos rincões da América Latina. O capitão de patente, Antonio das Neves Teixeira Pinto, relata com orgulho seus serviços prestados às autoridades tanto de estado quanto de fazendeiros, na sua trajetória de cinquenta anos de empreitada, matando, açoitando, torturando, castrando e prendendo negros. E, em tom íntimo e arrogante, também esnoba de maneira sádica o poder que sua classe.
Na terceira cena, intitulada “Cena após o monólogo do capitão Antonio Pinto”, ocorre uma sessão da Assembleia Provincial do Espírito Santo. Nesse momento o estado determina os tipos de punição e os nomes dos condenados. Conforme a participação de cada um na insurreição, a Assembleia estabelece e nomeia os que são condenados à morte pela forca, outros por açoites, inclusive, os números de chicotadas que cada um deveria receber de acordo com seu envolvimento na rebelião. Sarcasticamente, tais punições são colocadas como uma salvaguarda para a manutenção dos privilégios da classe dominante da sociedade coronelista que se instaurou na Província do Espírito Santo nessa época.
A quarta cena, intitulada “Cena na prisão entre Chico e João” se desenrola com Chico Prego e João da Viúva que estão encarcerados numa cela próxima à igreja de São José do Queimado. Fazem uma avaliação da luta, seus erros e acertos, refletem sobre a morte e o papel dos que assassinam e dos que são assassinados. Tentam sem êxito entender o sentido de uma punição para os que nada querem senão a liberdade que é o maior valor humano. Quebram a cabeça, tentando imaginar em que princípios se fundamenta a lógica de um grupo social sobre o outro. Debatem sobre a reação dos negros que ainda estão foragidos, os que estão sendo assassinados, os procedimentos da forca e o sentido da existência que, num determinado momento, parece que a morte, nesse modelo de sociedade, é a única alternativa para a liberdade. Dessa conversa com o amigo, algumas coisas incomodam muito a Chico Prego, como o pedido de perdão, os gritos, os choros.
Na cena final, ou quinta, intitulada “Cena após a execução”, o autor faz uma alegoria, uma espécie de ilustração para a obra apresentada, criando um espaço de reflexão sobre o acontecimento teatral. Fecha com um jogral cujos versos remontam a alguns elementos que sustentam a ação, não como uma forma de explicá-la, mas como uma possibilidade de estabelecer um diálogo entre o lúdico e o racional.
Enfim, cai o pano do documento cênico Queimados. De certo modo, a peça possui elementos de uma epopeia ou do épico, no sentido de que traz feitos bélicos e fatos históricos de indivíduos negros escravizados em busca de sua dignidade humana e social, que compõem um aspecto sonegado ou secundarizado de nossa história oficial. Embora pareça haver uma contradição com o que se entende como epopeico ou épico, considerando que, geralmente, essas categorias são “oficialmente” aceitas com a presença de heróis brancos. Os protagonistas de Queimados são, sem dúvida, heróis, pois eles se sustentam da rebeldia contra a moral da mitologia cristã estabelecida, que permitia paradoxalmente a redução de um homem à escravidão.
Por outro lado, pelo menos em sua estrutura dramática, podemos dizer que a obra dramática de Luiz Guilherme Santos Neves apresenta diversos subsídios que mais a aproximam da tragédia, conforme a Poética de Aristóteles. Primeiramente, porque a obra se alicerça no cânone aristotélico das unidades de ação: tempo e espaço.
Um dos elementos da descrição da tragédia na Poética que se encontra presente e com frequência em Queimados é o coro, como uma personagem coletiva que cumpre o papel de cantar partes significativas do drama. Ora como “cantos de cena” narrando situações, ora como kommói, que são cantos de lamento, recolhidos tanto do folclore capixaba quando do cancioneiro popular brasileiro.
Outros dois itens qualitativos que coincidem com o drama aristotélico são os elementos qualitativos do Reconhecimento e da Peripécia.
O “Reconhecimento” aqui, para além do momento exato em que o frei Gregório e Elysiário se “reconhecem”, há todo um processo de reconhecimento real da situação em que todos os outros personagens se encontravam e de que lado estavam. Na obra em questão, a peripécia acontece depois do encontro entre o frei Gregório e Elysiário, momento este em que o rumo da história que apontava para um acerto de mal-entendidos é radicalmente invertido e nada mais resta senão o enfretamento que, de alguma maneira, novamente se aproxima de outro elemento que compõe a tragédia, ou seja, a catástrofe.
Apesar de todas essas “coincidências”, a composição de Queimados se distancia da tragédia, tendo em vista que a mesma tem por base o mito e, conforme Aristóteles, […] o Mito é o princípio e como que a alma da Tragédia; só depois vem os caracteres. […] A Tragédia é, por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
A propósito, a comparação da estrutura da peça Queimados com a Poética não tem a pretensão de averiguar se a obra cumpre ou não os preceitos aristotélicos, mas refere-se a tentativa de desvencilhá-la da ideia de tragédia, tendo em vista que é muito comum que ela seja atribuída a ações de natureza grave, como mortes, desgraças e calamidades. E não somente em acontecimentos do cotidiano, mas também na literatura e na dramaturgia, como no caso de “A Morte em Morte e Vida Severina: estudo sobre a dimensão trágica do texto de João Cabral de Melo Neto”, de Felipe Gonçalves Figueira, quando ele busca relacionar a ideia da morte severina com a experiência da tragédia grega.
Entendendo a ideia de tragédia na qual se sustenta Aristóteles, e sendo essa, por sua vez, uma imitação de homens superiores, a partir das ações do mito, ela decorre da fatalidade, ou seja, trata-se de um destino do qual não se pode evitar. Assim, há que se fazer novamente outras considerações.
Primeiro, Queimados tem como protagonistas negros lutando heroicamente pela liberdade. Mas estes não eram considerados homens superiores, muito pelo contrário, eram tratados como inferiores, foram trazidos para o Brasil a força, torturados e açoitados durante quase toda a sua vida e muitos até assassinados. Aqui nem está em questão o status de superior ou inferior, mas reivindicar um olhar de justiça sobre esses seres humanos.
Segundo, se levarmos em conta a ideia de mito, uma vez mais estaremos diante de um grande equívoco, pois por mais que as autoridades governamentais, assim como os senhores que escravizaram os negros estivessem amparados pela igreja católica, suas relações nada tinham a ver com a mitologia. A escravidão foi um projeto político e demasiado humano de colonização, entendendo o conceito de humanidade de acordo com os interesses eurocêntricos dos colonizadores que não reconheciam a alteridade.
Terceiro, no que tange à fatalidade, ainda caímos numa dicotomia. Por um lado, a escravidão não tinha relação efetivamente direta com um destino do qual não se podia evitar, inclusive, há diversas experiências de relação entre outros povos que necessariamente não se deram dessa forma. Por outro, temos a clássica experiência do Édipo Rei, de Sófocles. Seu pai, Laio, que era o rei de Tebas, ao consultar o oráculo ficou sabendo que seu filho quando crescesse o mataria e teria filho com Jocasta, sua própria mãe. Laio resolve matá-lo, ainda bebê, levando-o ao Monte Cierão, onde pregou os seus pés no chão com pregos para que sangrasse e morresse rapidamente. Mas o bebê acabou recolhido ainda vivo por um pastor que passou no local. Depois, foi adotado por um rei de Corinto e, um dia, sem saber que era sua cidade natal, retornou a Delfos. Ao consultar o Oráculo, também recebeu a previsão de que iria matar o seu próprio pai e se casaria com sua mãe. Desesperado, Édipo resolveu fugir, para não acontecer nada a seus pais adotivos que ele acreditava serem os biológicos. Na fuga, encontrou um homem, que o desafiou e o mandou que saísse de sua frente. Tomado de fúria, Édipo o matou. Esse homem era Laio, o seu pai. Depois, o resto da profecia se cumpriu.
Nota-se que, realmente, trata-se de uma fatalidade, pois o que tinha que ser, de acordo com a mitologia, foi. Mas mesmo assim, embora sem saber, foi-lhe dada a oportunidade de tomar uma decisão. Ao contrário nos negros escravizados de Queimados cujos destinos desde o princípio estavam traçados pelos colonizadores sem que nunca tivessem a oportunidade de consultar um Oráculo, nem de tomarem nenhuma decisão entre sair ou ficar onde nasceram e sequer conhecer as leis das quais estavam submetidos.
Enfim, a peça teatral Queimados: documento cênico, de Luiz Guilherme Santos Neves, é uma história viva que merece ser revisitada para melhor se entender o presente de nossa sociedade como herdeira dessa ideologia escravocrata que, nem sempre de forma escamoteada, perpassa as relações de classes até os dias atuais. E se a tragédia grega tem por efeito específico a catarse, ou seja, a purificação ou purgação do terror e da piedade, aqui, em Queimados, a peça termina com algumas feridas abertas que não se cicatrizarão jamais pelo poder da mitologia, senão pelo reconhecimento e ação dos herdeiros das mãos que as abriram.