Em toda a minha trajetória de vida, tanto como artista de teatro, literatura e cinema, como professor de teatro, ciência política, filosofia, lógica, ética, etc., sempre me incomodou quando alguém se manifesta dizendo “não entendi nada”. Por um lado, porque sempre entendemos alguma coisa a partir do significado que emprestamos para a concepção de vida que definem o que entendemos por mundo ou mundos. Depois, porque parece óbvio que quando não entendemos algo é porque estamos colocando em xeque com aquilo que já concebemos como verdade. Mas o que é a verdade senão estarmos de acordo com o fato real ou a realidade? Lembrando que a realidade também não é absoluta, mas fenomenológica.
Geralmente, nunca me sinto à vontade para falar em reuniões em que as pessoas supostamente se predispõem a falar sobre cultura. Quase todo o tempo e as vezes que pronunciam a palavra cultura, essas pessoas se referem à arte ou aos artistas. Aliás, numa sociedade dividida em classes (opressores e oprimidos) a verdadeira arte, como se pode comprovar ao longo da história, é um movimento de contracultura. É um tema complexo e que o PT – Partido dos Trabalhadores tem se esquivado a fazer uma discussão radical (de raiz, fundamento, base), desde a sua fundação (sou um dos fundadores do PT).
Numa sociedade dividida em classes, conforme Marx, a arte não é propícia, exceto quando ela referenda (“embeleza”) o sistema ou quando é a possibilidade de um bom investimento. E, ainda de acordo com o pensador alemão, “o pensamento dominante numa sociedade divididas em classes é o pensamento da classe que domina”.
É muito comum que nossos parlamentares esbravejem afirmando suas defesas da cultura de forma altamente equivocada, como recentemente ouvi um dos nossos deputados dizer que “uma povo sem cultura não tem história”. É possível que um povo não tenha cultura? Existe a possibilidade de algum ser humano não ter construído ou não estar construindo a história? Nem que seja pela suposta neutralidade ou omissão, todo ser humano faz parte da construção da história.
Ainda, de acordo com Marx, todos nós fazemos história, não conforme gostaríamos, mas de acordo com as condições materiais de nosso tempo e a nossa compreensão de mundo. E há tantos mundos quanto nossas linguagens e condições econômicas, não do ponto de vista financeiro, mas da forma de produção de valores materiais e imateriais. Outros afirmam que nós priorizamos a cultura é que é o nosso carro chefe. Mas parece estúpido afirmar que o governo passado não investiu ou não gostava da cultura. Independente do gosto, ninguém vive fora da cultura. Tudo o que o governo passado fez foi “investir” na cultura, mas na cultura do ódio, do fascismo, da intolerância e da negação da verdade, da diferença, da ciência, etc.
A cultura é a forma como o ser humano dá ou busca significado da sua existência, desde a sua relação e entendimento com a natureza, consigo mesmo e com o outro. Nesse sentido, a cultura é a maneira como o ser humano se organiza e realiza sua concepção de mundo, ou seja, cultura é aquilo que se cultiva e que se cultua. E, numa sociedade burguesa, colonizada, misógina, preconceituosa e patriarcal, o que é cultivado ou cultuado? O machismo, a violência, o tráfico, o consumo, a alienação, o racismo e todas as deificações que sustentam o capital.
Quase todas as “falas” de nossos encontros redundam uma vez mais na manifestação de artistas e burocratas, os primeiros como se estivessem no palco e, os segundos, na zona de conforto de seus gabinetes. Os primeiros se acreditam como classe, sempre ouvimos se colocarem como “classe artística”, de forma egocêntrica e prepotente. Os artistas não são uma classe, são uma categoria e, levando em conta a sociedade burguesa (dividida em dominantes e dominados), não passam de uma categoria de trabalhadores e que, infelizmente, a maioria destes está a serviço da classe dominante, seja nos seus espetáculos, nas novelas, nos filmes, etc. Sem contar os patrocinadores que controlam ideologicamente o conteúdo de suas obras. Outra coisa que me engessa e não me deixa ver espaço para me manifestar são esses discursos e propostas naquilo que dizem cultura quando querem dizer arte.
Se pensamos fazer um encontro para tratar da saúde, o alvo é a forma como devermos nos organizar para que a população tenha acesso à saúde. Nesse caso o tema não se trata de uma redução às condições de trabalho e de salário dos médicos, enfermeiros e outras categorias que compõem o universo dos hospitais, pronto-socorro, farmácias, etc. Mas quando se diz respeito à cultura, os debates redundam nas questões dos artistas, sem levar em consideração o último elo da cadeia alimentar que são os espectadores, os leitores, enfim, o povo que necessita ter voz e acesso à produção cultural e artística do mundo, do país e da sua região.
Dei aulas em diversas faculdades privadas, principalmente, de ciência política, filosofia, artes, etc. Mas me lembro de que quando lecionava na UFES, eu tinha quatro disciplinas, a saber: lógica, história da filosofia, introdução à filosofia e filosofia da história. Diante da letargia e descompromisso de muitas turmas com a consciência de seu papel na história, eu sempre fazia uma provocação, afirmando que eles tinham muita sorte de estarem numa universidade pública e não correrem o risco de que pedreiros e gente do povo em geral (os que nunca tiveram a oportunidade de estudar e nem de ter seus filhos na universidade, mesmo sendo que esta tenha sido construída com seus trabalhos e impostos) não estarem no portão para lhes pegarem pelo colarinho e pedindo seus projetos para a melhoria de vida dos trabalhadores.
Da mesma forma, imagino o povo da periferia cobrando, dos artistas e do governo, o porquê de tantos editais para a cultura se nenhum dos espetáculos de teatro, de dança, de música, cineclube, oficinas, etc. passam pelos bairros, associações de moradores e escolas.
No mais, muito de menos na nossa esquerda. Como pensar a cultura e a arte se os nossos sindicatos e centrais sindicais, a minoria mais ou menos combatente e a maioria apenas organizada para a manutenção de ocupação de cargos de “liderança”, diga-se de passagem, um obstáculo para uma revolucionária luta de classes? Como pensar num sindicato de esquerda que se reduz ao discurso de defesa dos trabalhadores no que diz respeito ao salário e garantia de emprego? Mas como essa suposta esquerda sindical pode pensar o mundo se faz uma assembleia pontual dos direitos trabalhistas que só acontece esporadicamente? Como pensar numa esquerda em que esses sindicatos fazem um discurso de luta de classes numa assembleia de trabalhadores reduzido a relação de capital e trabalho e que em nenhum deles exista um espaço para alimentar uma relação crítica com a sociedade em todas as suas formas de organização?
Os sindicatos têm teatro? Têm espaços e oportunidades para a existência de um coral, um grupo de dança ou teatral, um projeto para a cultura popular? Podemos perguntar pela existência de centenas de coisas que compõem o universo da classe trabalhadora e a resposta será sempre não. As assembleias sindicais e, mesmo essas que geralmente que se fazem dizendo da cultura, não passam de um mero entretenimento e referendo de burocratas “culturais” que fazem do povo e do verdadeiro movimento cultural um objeto para o discurso institucional.
Então, como pensar num projeto de políticas públicas para a arte a e a cultura se as respostas se dão sempre no púlpito institucional para resolver os problemas de um povo que não é protagonista? Como pensar e elaborar editais de cultura que coloca os movimentos sociais reféns dos editais que não passam de um funil colocando os artistas concorrendo e disputando entre si mesmos o direito de expressar suas artes, limitados aos critérios da burocracia?
Se todos temos o direito à “cultura”, essa que muitos confundem com a arte, a maioria dos editais não passam de um engodo, criando um funil para contemplar os grandes atravessadores da produção (eufemismo para produtores) que usam os artistas e o povo para escamotear a ausência de uma verdadeira política pública nas artes. Trocando em miúdos, esse projeto está de cabeça para baixo, pois o papel do estado é se organizar para atender a demanda social e não apenas criar editais para promover uma competição entre os próprios artistas e sem levar em conta a população que está na rabada dessa cadeia alimentar.
Enfim, a arte não é cultura, mesmo que não exista uma arte que não surja ou tenha como matéria-prima a cultura como seu objeto ou ponto de partida, mas faz-se extremamente necessário que a arte seja sempre uma possibilidade de colocar a cultura em questão.
P.S.: Este é apenas um pequeno texto de desagravo diante dos discursos fáceis que ultimamente tem assolado o país em nossas conferências de “cultura”, de acordo com Voltaire, como se vivêssemos nos melhores dos mundos possíveis. Trata-se de um resumo de um artigo que estou escrevendo com referências científicas, ou seja, teóricas (hipóteses comprovadas) e empíricas (experiências humanas responsáveis pela formação das ideias e conceitos existentes no mundo).
(Imagem: Antonin Artaud, La Pendue 1945).